quinta-feira, 13 de setembro de 2007

CHINATOWN por Maria José Nogueira Pinto, na edição de hoje do Diário de Notícias

Nos tempos do escudo, apareceram as "lojas dos trezentos". Vendiam de quase tudo ao preço de trezentos escudos. Foram o sucedâneo de feiras como a de Carcavelos ou do Relógio, das barracas da Praça de Espanha e de uma certa economia paralela, "os ciganos", como então se dizia, carinhosamente aliás, que saíam furtivamente dos vãos das portas com um "Ó menina!", acenando com T-shirts da Dolce Gabana e malas Vuitton.

Foram estas realidades comerciais atípicas que permitiram a muitos portugueses esticar o seu magro orçamento familiar, contornando a evidente perda do seu poder de compra, permitindo-lhes adquirir bens necessários e - o que não é de somenos - o gosto de comprar por comprar, fosse um bibelot inútil, um naperon bordado, um bouquet de flores artificiais ou um brinquedo. Sem ironia, pode dizer-se que cumpriram uma importante função social.

As lojas chinesas chegaram depois, como um upgrading, uma manifestação prática da globalização enxertada no nosso quotidiano. Disseminadas por toda a cidade, com uma enorme variedade de produtos, preços imbatíveis e horários alargados, tornaram-se a resposta para a crise económica que atinge, agora, outros estratos sociais. Mas mesmo para quem ainda não foi atingido por ela, o recurso à loja chinesa é um acto de racionalidade orçamental. Se eu preciso de um abre-latas ou de uma frigideira, de uma moldura ou de um guarda-chuva, de uns óculos ou de um saco de compras, vou à loja do chinês. Porquê? Porque é muito mais barato, está ali mesmo à mão, disponível quando me convém e garante um atendimento sorridente e enigmático. Outros poderão optar por roupa à moda, jeans e stilletos dourados. Uma mãe de família, no regresso às aulas da sua prole, pode abastecer-se de lápis, canetas, réguas e cadernos. E donde, diabo, virá tudo isto, é caso para perguntar...

Questão diferente, mas indissociável, é o efeito devastador que estas lojas, disseminadas por bairros, áreas residenciais e zonas históricas, têm no comércio tradicional. Qualquer liberal me dirá que o mercado vai resolver esta questão: quem for competitivo, vive, quem não for, morre.

Eu sei que nem todo o comércio tradicional se esforçou para responder aos desafios com que, inexoravelmente, se tinha de confrontar: a abertura das grandes superfícies, dos centros comerciais, das cadeias internacionais, dos franchisings. Tão-pouco assimilou um novo conceito de serviço ao cliente, não modificou horários, não melhorou o atendimento.

Na sua lógica pura, um defensor acérrimo do mercado apostará na progressiva substituição de todo este comércio por simpáticas e prestáveis lojas chinesas. Mas será essa situação desejável? Claro que não. E será justo em termos de concorrência? Decerto que não. E há algum mercado que dispense um regulador? Não creio.

A favor deste comércio ameaçado, são muitos os argumentos que se podem aduzir: a morte lenta de certas zonas, a falta de segurança, o descuido do espaço público; o importantíssimo papel deste comércio na coesão social, na sustentabilidade e na identidade de tantos bairros lisboetas; a obrigação de gerir a ocupação e a distribuição do espaço de modo a garantir uma oferta diversificada e equilibrada e, por fim, uma equidade nas condições em que estas actividades se desenvolvem. Se o mercado é indiferente a estes aspectos, a entidade reguladora não pode sê-lo.

Uma cidade como um todo harmonioso, onde se possa coexistir harmoniosamente, requer que se percebam, a tempo, as chamadas diferenças úteis. O que pode levar à opção por territórios próprios face a realidades específicas que, deste modo, melhor se potenciam. Foi esta a opção, relativamente à imigração chinesa de forte vocação para o comércio, em várias cidades do mundo, cidades dignas desse nome, todas com a sua chinatown.

No caso de Lisboa as vantagens eram múltiplas e mútuas: um centro de atracção, um reordenamento espacial do comércio dando lugar a todos, um tratamento diferente para o que é diferente, a criação de verdadeiras condições de concorrência.

Confundir isto com segregação, ou é má-fé, ou é pura ignorância. E, a propósito, alguém já perguntou aos comerciantes chineses o que pensam de uma chinatown?

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