Na Revista Crítica de Ciências Sociais, António Fernando Cascais explicita em “Diferentes como nós” os vários momentos históricos por que passou o movimento LGBT português. Começa por esclarecer que não existe movimento antes do 25 de Abril, mas que o 25 de Abril por si só não é o suficiente para o seu nascimento. As oposições à ditadura não tiveram agenda (homo)sexual, apenas a “questão da mulher” (numa perspectiva laboral) e a “questão da juventude”. Nesse artigo é identificada a principal ambiguidade desse movimento nascente, a saber, o facto de ter como referencial cultural e político um sector que frequentemente o enjeitou, nomeadamente o sector da esquerda. Por ser uma esquerda que nos anos 60 e 70 passou ao lado das transformações culturais que então ocorriam; ainda por ser uma esquerda que, pós-25 de Abril, se depara com um país de tal forma atrasado que cai na tentação de afunilar o questionamento e a acção política; e por ser uma esquerda que nunca soube integrar, de forma visível e descomplexada, os homossexuais assumidos e/ou as suas associações no seu seio (ao contrário de Espanha onde na oposição anti-franquista existiam já embriões de associativismo gay e onde o movimento homossexual surge associado às movimentações políticas autonómicas da Catalunha, afirma Cascais). No pós-25 de Abril, Cascais divide historicamente a evolução do movimento da seguinte maneira:
“1974-1990 – primeiro período (com um eixo em meados da década de 80)
1990-1991 – período de transição, com características mistas
1991-1994 – segundo período
1995-1997 – período de transição, com características mistas
1997 ao presente – terceiro período”
No primeiro período “A esquerda partidária e sindical, sobretudo comunista, (…) define-se em função do ruralismo tradicional e do industrialismo do séc. XIX e é herdeira directa da cultura neo-realista que, como notou Eduardo Lourenço (1978), veicula uma imagem populista idealizante do povo português que prolonga e chega a reforçar, mas não subverte, o nacionalismo do Estado Novo”. É assim que a “questão homosexual”, como bem refere, é adiada para um futuro sem classes e considerada uma questão divisionista pequeno-burguesa.Mas o que se mantém fundamentalmente, enuncia Cascais, é a suspeita face a uma [qualquer] revindicação identitária no quadro fundacional duma esquerda de matriz iluminista [e que nunca, e ainda não, criticou o seu falso universalismo; exemplo gritante disso é o facto de não termos ainda sequer políticos feministas]. Daí que a resolução da “questão homossexual” fosse vista como uma resolução meramente legal, um caso de reconhecimento de direitos sem qualquer especificidade, enquadrada em secções como a “libertação do quotidiano” e a “transformação da vida”. De notar que é neste âmbito que a medicalização da homossexualidade começa também a ser tratada, no âmbito mais vasto da medicalização do desvio e da anti-psiquiatria, o que constitui o primeiro avanço da cultura científica de esquerda [não resisto aqui a agradecer a uma tal Teresa, minha prof. de Psicologia que, em 1982, no meu 10º ano, me deu a ler a bíblia da anti-psiquiatria, Cooper]. Neste período os homossexuais não têm literalmente voz, são objectos do discurso dos outros, à excepção de Guilherme de Melo, o primeiro a falar em nome dos “homossexuais”. Aponta ainda a breve existência do MHAR (Movimento Homossexual de Acção Revolucionária), em Maio de 1974 [a que pertenceu António Serzedelo], que não sobrevive à resposta pública de Galvão de Melo, logo após. A dificuldade em penetrar na esquerda leva alguns a formar, em 1980, o CHOR (Colectivo de Homossexuais Revolucionários), apoiado na organização cultural Culturona, em cuja sede junta centenas de pessoas no seu lançamento. Não sobrevive à dita mas realiza ainda os Encontros “Ser(homo)sexual”, pelo CNC, em 1982, onde o próprio Cascais apresenta o primeiro texto de reflexão teórica sobre o movimento. A reformulação da esquerda de molde a poder reconhecer a agenda emancipatória homossexual só se inicia com o cruzamento de três factores: a adesão à Comunidade Europeia, o cavaquismo e a epidemia da sida. É no quadro desta esquerda arcaica e presa no séc. XIX que, afirma ainda Cascais, a emancipação homossexual é frequentemente empurrada para uma esquerda revolucionária, uma esquerda de recusa outsider do sistema [de que é ainda sintoma o discurso das ditas “questões fracturantes”]. Disso é sinal o nascimento do GTH (Grupo de Trabalho Homossexual) do PSR (Partido Socialista Revolucionário). Este primeiro período é dividido em dois, em 1982, quando a crise económica e social leva à crise da participação política e associativa e ao fechamento da maior parte dos espaços gay de Lisboa. Já em 1986, com a adesão, surge a expectativa de acesso ao adquirido europeu, nomeadamente cultural e jurídico, que não mais deixará de influenciar a abertura da esquerda à agenda homossexual. A partir de 1987 o cavaquismo força a esquerda a repensar-se.Em 1986 a morte de António Variações é sentida como tragédia colectiva sobre a comunidade gay. É na história da relação do movimento homossexual com o combate à sida que Cascais vem a assumir aspectos que António Serzedelo reclama há muito e que sempre foram escamoteados (escamoteamento esse que continuou a gerar desconfianças inter-associativas durante muitos anos...).
Reconhece Cascais que o movimento associativo homossexual nasce no movimento de luta contra a sida, ganha visibilidade e respeitabilidade pública nele (uma vez que não era forte anteriormente não sofre o backlash que sofeu o movimento americano e beneficia do politicamente correcto tratamento de um qualquer outro paciente de sida, na base, indiferenciada diga-se, dos direitos humanos e da cidadania; para isto contribuiu também o atraso da comunicação social em tratar o tema, o que evitou a fase perigosa dos “grupos de risco”) e, isto é que nunca tinha sido assumido antes, sofre os custos de um certo paternalismo desse movimento contra a sida [e aqui não é esmiuçado um dado importante: como surge esse paternalismo. A Abraço, que se via a si própria como elite médica esclarecida, em reunião com as associações LGBT, pretendia ser ela a liderar a comunidade...]. Aqui, e uma vez que se trata de pensar a influência do movimento de luta contra a sida na formação do movimento LGBT, penso também que seria intelectualmente honesto referir a forma como o apoio económico da Comissão Nacional de Luta Contra a Sida possibilitou em grande medida, e possibilita ainda, a sobrevivência financeira da associação homossexual mais institucional, a Ilga Portugal. Ao invisibilizar este aspecto Cascais pode deixar de mencionar que é esta ocultação que permite que o discurso emancipatório gay surja desvinculado do discurso de luta contra a sida, mesmo quando as cinco Marchas anuais (ainda em 1997-2002! – veja-se como estava esta comunhão enraízada) em Memória e Solidariedade com as Pessoas Infectadas com o VIH/SIDA são organizadas pela Ilga Portugal (aspecto simbólico fundamental que não refere), quando isso era, à época, um aspecto bem mais problemático dentro do movimento (para aqueles, como a Opus Gay, que defendiam o afastamento do movimento da organização – que não da participação – nestes eventos, e o afastamento da dependência financeira da CNLCS, assim como da CML…).
Cascais acaba até por dizer que a associação com a luta contra a sida traz visibilidade respeitável à comunidade homossexual, quando o que se passou, no meu entender, foi que foi feita uma grande luta em todos esses anos, nomeadamente pela Opus Gay, para que outras agendas homossexuais surgissem mediaticamente e desvinculassem efectivamente o movimento da vaga persecutória ligada à sida que poderia ter sofrido… Cascais prossegue enunciando uma modificação estratégica na agenda gay por efeito da epidemia: da luta pela cidadania sexual centrada na reivindicação de direitos respeitantes à conduta prática e à identidade, para uma centrada nos direitos na relação [também aqui me parece que esta foi uma modificação dominante mas não foi a única; há quem tenha persistido na primeira linha, e ainda hoje privilegie outras lutas que não o casamento…]. Esta estratégia possibilita um discurso de integração, igualdade e indiferença. É por estes caminhos que começa a ouvir-se o construcionismo queer e a afirmação do lgbt para além do gay. Com a terceira fase do movimento, a partir de 95-97, a comunidade torna-se um sujeito histórico dotado de voz própria: o Clube Safo e o PortugalGay.Pt e a Korpus em 96, a Ilga, o Festival de Cinema e a Opus em 97, o Vidas Alternativas em 99. Cascais refere que existe um acolhimento por parte da esquerda, que culmina com João Soares à fente da CML, mas, a meu ver, há que analisar o discurso de Soares, e não só as práticas de apoio à Ilga e ao Festival de Cinema, para concluir se há ou não um acolhimento ou se há apenas um aproveitamento político e turístico… Até aos nossos dias surgem múltiplas associações, até for a dos grandes centros, diferenciadas internamente, com capacidade de acolhimento de eventos internacionais, reconhecidas pelo associativismo mundial. A articulação com a academia é ainda puca. Mas existe [alguma] interlocução com as instâncias governamentais e político-partidárias. Nesta fase aúrea penso que falta enunciar um aspecto simbólico importante, que é a inscrição em eventos nacionais importantes património da esquerda, como o 25 de Abril e o 1º de Maio, de que teve iniciativa a Opus Gay. Também neste sentido, aproveito desde já para referir que me parece de suma importância a participação no centenário da República em 2008 (adiamentos do casamento para lá dispensam-se, no entanto…).O final do artigo lança um alerta: “(…) o associativismo atinge [hoje] aquilo que tudo indica ser um limite de crescimento, o qual, por sua vez, é contemporâneo (mas não o efeito) do início de uma reacção anti-emancipatória e de um ambiente político e mediático adverso que configuram uma nova situação agónica, não sem certas similitudes com aquela que o precipitou.” (p. 124) Não é essa a minha intuição. Penso que o associativismo vai é que mudar, renovar-se, de estilo e de instituições. E também não vejo um clima adverso – vejo até a possibilidade de uma maior aceitação da nossa agenda via agenda anti-globalização. Contra este decair que identifica Cascais aponta como solução o auto-conhecimento [fundamentalíssimo]: quem somos, património histórico, sócio-histórico, etc. [daí ser fundamental exigir ao Estado um serviço de recolha de dados nacional e profundo, conforme recomenda a UE]; e o conhecimento dos nossos inimigos.
Por fim, e reconhecendo o esforço notório e pioneiro de sistematização de Cascais neste seu artigo, não deixo de sentir algum desconforto por não ver nele reflectidas as preocupações mais especificamente lésbicas, motivadas por outras forças que não a epidemia da sida, muito mais ligadas, via Clube Safo e diversas pequenas publicações, ao desenvolvimento social e cultural do que ao desenvolvimento político. Mas esse retrato, reconheço-o, terão eventualmente de ser as lésbicas a fazê-lo…
Anabela Rocha
(texto também publicado no blogue damm queer)
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